A liturgia do XXVIII Domingo do Tempo Comum convida-nos a refletir sobre as escolhas que fazemos; recorda-nos que nem sempre o que reluz é ouro e que é preciso, por vezes, renunciar a certos valores perecíveis, a fim de adquirir os valores da vida verdadeira e eterna.
Na primeira leitura (Sb 7,7-11), um “sábio” de Israel apresenta-nos um “hino à sabedoria”. O texto convida-nos a adquirir a verdadeira “SABEDORIA” (que é um dom de Deus) e a prescindir dos valores efêmeros que não realizam o homem. O verdadeiro “sábio” é aquele que escolheu escutar as propostas de Deus, aceitar os seus desafios, seguir os caminhos que Ele indica.
O Evangelho (Mc 10,17-27) apresenta-nos um homem que quer conhecer o caminho para alcançar a vida eterna. Jesus convida-o renunciar às suas riquezas e a escolher “caminho do Reino” – caminho de partilha, de solidariedade, de doação, de amor. É nesse caminho – garante Jesus aos seus discípulos – que o homem se realiza plenamente e que encontra a vida eterna.
A segunda leitura (Hb 4,12-13) convida-nos a escutar e a acolher a Palavra de Deus proposta por Jesus. Ela é viva, eficaz, atuante. Uma vez acolhida no coração do homem, transforma-o, renova-o, ajuda-o a discernir o bem e o mal e a fazer as opções corretas, indica-lhe o caminho certo para chegar à vida plena e definitiva.
Leituras
7Orei, e foi-me dada a prudência;
supliquei, e veio a mim o espírito da sabedoria.
8Preferi a Sabedoria aos cetros e tronos
e em comparação com ela, julguei sem valor a riqueza;
9a ela não igualei nenhuma pedra preciosa,
pois, a seu lado, todo o ouro do mundo
é um punhado de areia
e diante dela, a prata, será como a lama.
10Amei-a mais que a saúde e a beleza,
e quis possuí-la mais que a luz,
pois o esplendor que dela irradia não se apaga.
11Todos os bens me vieram com ela,
pois uma riqueza incalculável está em suas mãos.
Palavra do Senhor.
R. Saciai-nos, ó Senhor, com vosso amor, e exultaremos de alegria!
12Ensinai-nos a contar os nossos dias,*
e dai ao nosso coração sabedoria!
13Senhor, voltai-vos! Até quando tardareis?
Tende piedade e compaixão de vossos servos!R.
14Saciai-nos de manhã com vosso amor,*
e exultaremos de alegria todo o dia!
15Alegrai-nos pelos dias que sofremos,
pelos anos que passamos na desgraça!R.
16Manifestai a vossa obra a vossos servos,*
e a seus filhos revelai a vossa glória!
17Que a bondade do Senhor e nosso Deus
repouse sobre nós e nos conduza!*
Tornai fecundo, ó Senhor, nosso trabalho.R.
12A Palavra de Deus é viva, eficaz
e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes.
Penetra até dividir alma e espírito,
articulações e medulas.
Ela julga os pensamentos e as intenções do coração.
13E não há criatura que possa ocultar-se diante dela.
Tudo está nu e descoberto aos seus olhos,
e é a ela que devemos prestar contas.
Palavra do Senhor.
Naquele tempo:
17Quando Jesus saiu a caminhar, veio alguém correndo,
ajoelhou-se diante dele, e perguntou:
‘Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?’
18Jesus disse: ‘Por que me chamas de bom?’
Só Deus é bom, e mais ninguém.
19Tu conheces os mandamentos:
não matarás; não cometerás adultério; não roubarás;
não levantarás falso testemunho;
não prejudicarás ninguém;
honra teu pai e tua mãe!’
20Ele respondeu: ‘Mestre, tudo isso
tenho observado desde a minha juventude’.
21Jesus olhou para ele com amor, e disse:
‘Só uma coisa te falta:
vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres,
e terás um tesouro no céu.
Depois vem e segue-me!’
22Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido
e foi embora cheio de tristeza,
porque era muito rico.
23Jesus então olhou ao redor e disse aos discípulos:
‘Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!’
24Os discípulos se admiravam com estas palavras,
mas ele disse de novo:
‘Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus!
25É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha
do que um rico entrar no Reino de Deus!’
26Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso,
e perguntavam uns aos outros:
‘Então, quem pode ser salvo?’
27Jesus olhou para eles e disse:
‘Para os homens isso é impossível, mas não para Deus.
Para Deus tudo é possível’.
28Pedro então começou a dizer-lhe:
‘Eis que nós deixamos tudo e te seguimos’.
29Respondeu Jesus:
‘Em verdade vos digo,
quem tiver deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos,
campos, por causa de mim e do Evangelho,
30receberá cem vezes mais agora, durante esta vida
– casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos,
com perseguições –
e, no mundo futuro, a vida eterna.
Palavra da Salvação.
Fonte: Liturgia Diária – CNBB
Reflexão
O QUE TENHO QUE FAZER?
Desde que o homem é homem, ele tem experimentado a necessidade de ir além de uma vida que parece terminar com a morte: a “vida eterna”. Pois então: Que diferença faz o que se consegue ter, ou fazer nesta vida… se acaba tudo?
No entanto, parece que essa questão não preocupa a imensa maioria hoje. Ao menos formulada com as palavras que usa aquele homem que se aproxima de Jesus. A VIDA ETERNA! Atarefado com o quotidiano, aprisionado por coisas imediatas, pelo que é urgente fazer e atualizar… que não há lugar para esta pergunta, a não ser talvez, quando a doença nos chega, ou quando alguém próximo de nós deixa este mundo. Dizem que esta pandemia, com todas as suas terríveis consequências, reacendeu a questão da VOCAÇÃO RELIGIOSA entre os jovens…
Alguns pensadores modernos recusaram explicitamente fazer propostas para além desta vida: “Queremos o céu aqui na terra; o outro céu deixemos para os anjos e pardais ”. E não foram poucos os que endossaram a máxima que centrou o filme “O Clube dos Poetas Mortos“: “VIVA O PRESENTE“.
A verdade é que Jesus se aproveita e corrige essa pergunta: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?”, e fala também em “ter um tesouro no céu” ou em “entrar no Reino”. Isto é: que Deus (o céu) seja o seu único tesouro. O Mestre tenta reorientar esse olhar… não para “herdar” ou “ganhar” a outra vida, mas para PREENCHER ESTA VIDA DE SIGNIFICADO.
Aquele desconhecido tinha sua maturidade, sua capacidade de fazer perguntas sérias. Você tem que admitir. O que ele pergunta a Jesus no fundo é:
- O que devo fazer para ser feliz?
- Como posso me sentir satisfeito comigo mesmo?
- O que devo fazer para que minha vida realmente valha a pena?
Porque para todas essas perguntas eu não havia encontrado uma saída válida.
As respostas usuais que nossa sociedade nos oferece apontam para:
- Estudar para ter um bom emprego, ou para ser competitivo, ou para poder voltar a ter um emprego; ganhar dinheiro “suficiente”, comprar um apartamento, um carro, fazer uma viagem… dinheiro “suficiente” é algo bem difícil de especificar…
- Também o mundo afetivo: encontrar uma companheira (um companheiro), formar família, estar na companhia de bons amigos…
- E também aquela dimensão que se fixa em si mesmo: cuidar da própria saúde, ter uma boa aparência, a imagem que apresentamos aos outros, fazer o que gosta…
- Às vezes também se propõe aprender a ser uma boa pessoa, a ter princípios éticos, algumas práticas religiosas…
Todas essas coisas são boas e necessárias… claro que são! Mas nenhum delas, nem mesmo todas juntos, respondem ao profundo desejo de felicidade que temos. Nenhum delas, mesmo consegue com muito esforço, nos garantir a felicidade. Porque são todas tão frágeis: o emprego e a economia são frágeis, a estabilidade familiar é frágil, a minha saúde é frágil e as pessoas em que podemos nos apoiar e andar todos os dias são frágeis… porque um dia podem nos faltar…
Aquela bom homem – Marcos não nos disse que é “jovem” – era alguém “piedoso e devoto”. Boa pessoa, podemos dizer. Ele honestamente reconheceu que apesar de tudo o que ele tinha e fazia… uma poderosa inquietação permanecia em seu coração. O que você pode não saber é o quão perigoso é fazer essas perguntas diretas a Jesus.
A segunda leitura já nos dizia que a Palavra de Deus é mais afiada do que uma espada de dois gumes, que penetra no fundo da consciência, nos locais mais profundos do coração, nos desejos mais ocultos… e os põe em evidência, nos tira da zona de conforto. Não apenas quando nossa vida está “deserta“, ou em pecado. Além disso, e talvez com mais força, quando parece que tudo se encaixa perfeitamente. Porque o Deus de amor, justamente por ser amor, quer que caminhemos mais, que cresçamos mais, que não caiamos na mediocridade, nem nos concentremos em nós mesmos. E as palavras de Jesus lhe dão um corte profundo: penetram até o ponto em que a alma e o espírito se dividem, e ele julga os desejos e as intenções do coração. (segunda Leitura).
O Bom Mestre primeiro aponta para os mandamentos: ali está a vontade do Deus Bom. Para salvar-se seria suficiente. Jesus não menciona os mandamentos referidos à relação com Deus (os três primeiros, por que será?), mais só os que têm que ver com os semelhantes. Mudas a sua ordem tradicional, e acrescenta um novo: não defraudarás. face à vida eterna tem prioridade o comportamento com os homens, tal como está formulado nos mandamentos.
Aquele homem devia sentir-se orgulhoso de si mesmo, porque vivia tudo isso desde pequeno. Não é tão difícil cumpri-los: a grande maioria dos homens (e dos crentes) os cumpre suficientemente. O discípulo de Jesus, aquele que quer entrar no Reino, tem aqui um ponto de partida, o início de “outra coisa” muito melhor e mais completa. E Jesus dá uma reviravolta com três imperativos: VENDA, DÊ, SIGA-ME. É como se dissesse: “Falta algo”: “Por que você não deixa de focar em cumprir, nos mandamentos, em teu esforço de ser um dom perfeito, de conseguir, de realizar, herdar, ter…? Tudo isso te faz sentir muito satisfeito consigo mesmo (a verdade é que nem tanto, dada a sua preocupação), e sobre tudo te coloca no centro de tudo. Mas você não é livre e seu coração não está cheio.
Depois de um olhar de carinho, ele diz: “Vamos olhar juntos os outros, os que sofrem, os pobres”. “Venha comigo e comece a amar, coloque os outros no centro de suas inquietudes e preocupações… e que Deus seja seu único tesouro.” Em última análise, essa foi a opção pessoal de Jesus e é sua proposta sincera.
E aquele que se ajoelhou à sua frente… sai de cena em silêncio, o rosto enrugado e triste: ele era muito rico! Ele não estava disposto a se descentrar, Deus não era seu tesouro. Seu tesouro era outro… que o mantinha acorrentado. Foi isso que o deixou triste? Você se sentiu triste ao pensar que o que tinha foi bom durante toda a sua vida… ao descobrir que estava falhando… o primeiro dos mandamentos, você estava falhando ao Deus Bom, que não estava “acima de todas as coisas“. Se foi triste por não poder segurar o olhar de carinho e cumplicidade que o Mestre lhe havia oferecido…
O fato é que desistiu de comprovar que com Jesus a vida eterna e plena já começa a ser desfrutada aqui, embora soubesse muito bem que “tudo o que tinha” não o ajudava a sentir que sua vida valia a pena.
Gosto de imaginar que aquele homem impetuoso e “corredor”… não suportou a tristeza que tão forte se manifestava no seu coração, a tristeza de ver a sua “verdade”…, bendita tristeza! E que acabou não olhando para o umbigo, suas coisas, sua perfeição, seus projetos… e acabou sendo um bom discípulo de Jesus! Os evangelistas não nos dizem. Mas há tantas coisas que eles não nos contaram! Talvez este seja uma delas. Gosto de imaginar assim… porque… talvez aconteça comigo.
Texto: QUIQUE MARTÍNEZ DE LA LAMA-NORIEGA, CMF
Fonte: Ciudad Redonda