XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO C)

A PALAVRA

Na Palavra de Deus que hoje nos é proposta, cruzam-se vários temas (a fé, a salvação, a radicalidade do “caminho do Reino”, etc.); mas sobressai a reflexão sobre a atitude correta que o homem deve assumir face a Deus. As leituras convidam-nos a reconhecer, com humildade, a nossa pequenez e finitude, a comprometer-nos com o “Reino” sem cálculos nem exigências, a acolher com gratidão os dons de Deus e a entregar-nos confiantes em suas mãos.

Na primeira leitura (Hab 1,2-3.2,2-4), o profeta Habacuc interpela Deus, convoca-o para intervir no mundo e para pôr fim à violência, à injustiça, ao pecado… Deus, em resposta, confirma a sua intenção de atuar no mundo, no sentido de destruir a morte e a opressão; mas dá a entender que só o fará quando for o momento oportuno, de acordo com o seu projeto; ao homem, resta confiar e esperar pacientemente o “tempo de Deus”.

O Evangelho (Lc 17,5-10) convida os discípulos a aderir, com coragem e radicalidade, a esse projeto de vida que, em Jesus, Deus veio oferecer ao homem… A essa adesão chama-se “”; e dela depende a instauração do “Reino” no mundo. Os discípulos, comprometidos com a construção do “Reino” devem, no entanto, ter consciência de que não agem por si próprios; eles são, apenas, instrumentos através dos quais Deus realiza a salvação. Resta-lhes cumprir o seu papel com humildade e gratuidade, como “servos que apenas fizeram o que deviam fazer”.

A segunda leitura (2Tm 1,6-8.13-14) convida os discípulos a renovar cada dia o seu compromisso com Jesus Cristo e com o “Reino”. De forma especial, o autor exorta os animadores cristãos a que conduzam com fortaleza, com equilíbrio e com amor as comunidades que lhes foram confiadas e a que defendam sempre a verdade do Evangelho.

Fonte: Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus

Leituras

Com frequência encontramos pessoas que nos questionam acerca da relação entre Deus, a sua justiça e a situação do mundo: se Deus existe, como é que Ele pode pactuar com a injustiça e a opressão? Se Deus existe, porque é que há crianças a morrer de cancro ou de fome? Se Deus existe, porque é que os bons sofrem e os maus são compensados com glória, honras e triunfos? Se Deus existe, por que o sofrimento inocente? Estas são as questões que, hoje, mais obstaculizam a crença em Deus… A nossa resposta tem de ser o reconhecimento humilde de que os projetos de Deus ultrapassam infinitamente a nossa pequenez e finitude e que nós nunca conseguiremos explicar e abarcar os esquemas de Deus…

2 Senhor, até quando clamarei,
sem me atenderes?
Até quando devo gritar a ti: “Violência!”,
sem me socorreres?
3 Por que me fazes ver iniquidades,
quando tu mesmo vês a maldade?
Destruições e prepotência estão à minha frente;
reina a discussão, surge a discórdia.
2,2 Respondeu-me o Senhor, dizendo:
“Escreve esta visão,
estende seus dizeres sobre tábuas,
para que possa ser lida com facilidade.
3 A visão refere-se a um prazo definido,
mas tende para um desfecho, e não falhará;
se demorar, espera,
pois ela virá com certeza, e não tardará.
4 Quem não é correto, vai morrer,
mas o justo viverá por sua fé”.
Palavra do Senhor.

R. Não fecheis o coração, ouvi, hoje, a voz de Deus!

1 Vinde, exultemos de alegria no Senhor,*
aclamemos o Rochedo que nos salva!
2 Ao seu encontro caminhemos com louvores,*
e com cantos de alegria o celebremos! R.

6 Vinde adoremos e prostremo-nos por terra,*
e ajoelhemos ante o Deus que nos criou!

7 Porque ele é o nosso Deus, nosso Pastor, †
e nós somos o seu povo e seu rebanho,*
as ovelhas que conduz com sua mão. R.

8 Oxalá ouvísseis hoje a sua voz:*
“Não fecheis os corações como em Meriba,

9 como em Massa, no deserto, aquele dia, †
em que outrora vossos pais me provocaram,*
apesar de terem visto as minhas obras”. R.

Como é que eu revitalizo, dia a dia, o meu compromisso com Cristo e com os irmãos? Há muitos caminhos para aí chegar… Mas a comunhão com Deus, a oração, a escuta e partilha da Palavra de Deus, os sacramentos são formas privilegiadas para redescobrir o sentido das minhas opções e do meu compromisso com Deus. Isto faz sentido, para mim? É este o caminho que venho procurando seguir? Mantenho com Deus esse diálogo necessário?

Caríssimo:
6 Exorto-te a reavivar a chama do dom de Deus
que recebeste pela imposição das minhas mãos.
7 Pois Deus não nos deu um espírito de timidez
mas de fortaleza, de amor e sobriedade.
8 Não te envergonhes do testemunho de Nosso Senhor
nem de mim, seu prisioneiro,
mas sofre comigo pelo Evangelho,
fortificado pelo poder de Deus.
13 Usa um compêndio 
das palavras sadias que de mim ouviste em matéria de fé 
e de amor em Cristo Jesus.
14 Guarda o precioso depósito,
com a ajuda do Espírito Santo que habita em nós.
Palavra do Senhor.

O “Reino” é uma realidade sempre “a fazer-se”; mas apresentam-se, com frequência, situações de injustiça, de violência, de egoísmo, de sofrimento, de morte, que impedem a concretização do “Reino”. Como é que eu ajo, nessas circunstâncias? A minha “fé” em Jesus conduz-me a um empenho concreto pelo “Reino” e entusiasma-me a lutar contra tudo o que impede a concretização do “Reino”? A minha “fé” nota-se nos meus gestos? Há algo de novo à minha volta pelo facto de eu ter aderido a Jesus e pelo facto de eu estar a percorrer o “caminho do Reino”? Quais são os “milagres” que a minha “fé” pode fazer?

Naquele tempo,
5 os apóstolos disseram ao Senhor:
“Aumenta a nossa fé!”
6 O Senhor respondeu:
“Se vós tivésseis fé,
mesmo pequena como um grão de mostarda,
poderíeis dizer a esta amoreira:
‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’,
e ela vos obedeceria.
7 Se algum de vós tem um empregado
que trabalha a terra ou cuida dos animais,
por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo:
‘Vem depressa para a mesa?’
8 Pelo contrário, não vai dizer ao empregado:
‘Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me,
enquanto eu como e bebo;
depois disso tu poderás comer e beber?’
9 Será que vai agradecer ao empregado,
porque fez o que lhe havia mandado?
10 Assim também vós:
quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram,
dizei: 
‘Somos servos inúteis;
fizemos o que devíamos fazer’ “.
Palavra da Salvação.

Reflexão

FÉ VIVA É O SERVIÇO AOS NOSSOS IRMÃOS E IRMÃS

ALGO EM QUE SE DEVE ACREDITAR” é uma expressão frequentemente repetida que, apesar da sua imprecisão e vagueza, contém uma grande verdade. Cada ser humano de fato acredita em algo, no sentido de que tem confiança em algo que lhe dá direção e significado. Mesmo aqueles que não acreditam, ou seja, aqueles que não têm fé religiosa, são à sua maneira crentes, acreditam em “alguma coisa”, acreditam (e estas são frases que provavelmente todos ouvimos em algum momento) na liberdade, na justiça, no progresso ou na ciência. Porque, de fato, na vida humana, é impossível traduzir tudo em provas imediatas e há sempre que deixar espaço para a confiança naquele “ALGO” que não é objeto de certeza real ou experiência direta, mas de desejo e esperança. Mesmo os positivistas mais convictos, que afirmam confiar apenas na ciência positiva, professam assim certa fé, porque confiam (sem provas) que a ciência revelará no futuro todos os mistérios da natureza.

Esta fé como confiança desempenha um papel central na vida humana, porque orienta as nossas escolhas práticas, a seleção dos nossos valores e, consequentemente, a nossa ação.

Quando vivi em Krasnoyarsk (Cidade russa), assisti às aulas de filosofia de um antigo professor soviético, que falava da dialética da matéria (com a qual resolvia todo o tipo de problemas filosóficos) com a unção de um verdadeiro crente (desnecessário será dizer que nunca forneceu uma única prova científica para o objeto da sua fé, que ele considerava ser a ciência). E há alguns anos vimos como um dos mais ativos representantes do ateísmo contemporâneo, Richard Dawkins, um negador de todo o significado e valor que transcende os limites da biologia, lançou uma verdadeira cruzada contra a religião e todas as suas expressões, porque embora negue que o bem e o mal existem, considera muito mau que haja quem defenda o contrário e, aparentemente, muito bom dedicar-se a combatê-los. Por outras palavras, estes incrédulos militantes acabam também por acreditar “EM ALGO“. Sem esta fé mínima, não seriam capazes de agir de forma alguma, nem seriam capazes de se mobilizar a favor ou contra nada.

A fé tem um significado humano incontornável. A fé é, antes de mais, e acima de tudo, já dissemos, CONFIANÇA. A confiança é a base das relações humanas, da amizade, mesmo da economia, quanto mais do amor. Aqueles que vivem em desconfiança sistemática são incapazes de se abrir a qualquer coisa ou a qualquer pessoa, e estão fechados a relações pessoais autênticas, o que é, como a experiência demonstra, uma fonte de sofrimento incalculável.

Por outro lado, a fé como confiança não é, como muitas vezes se afirma uma atitude cega. É verdade que a fé implica aceitar o que não é visto diretamente e, portanto, tem inevitavelmente uma componente de risco, mas isto não significa que não haja absolutamente nenhuma forma de garantir o objeto da fé. Nas relações humanas existe todo um sistema de sinais (comportamentos, atitudes, expressões) que nos dizem que tal pessoa ou grupo ou instituição é ou não “digno de confiança“, de modo que é razoável ou não depositar neles a nossa confiança. Aqueles que depositam a sua confiança de forma completamente cega são crédulos, e o próprio uso da linguagem nos diz que a credulidade não é o mesmo que a fé.

Pois bem, também na esfera religiosa, nem todas as religiões, ou seja, todos os objetos de fé e todos os modos de crença são igualmente aceitáveis. Para que a fé religiosa seja uma virtude teológica deve ser dirigida a um objeto verdadeiramente existente; além disso, deve ser dirigida a um objeto que seja digno em si mesmo (portanto digno de fé); finalmente, deve ser relacionada dignamente com este objeto digno de fé. Assim, confiar em objetos supersticiosos, tais como o horóscopo ou a pedra filosofal que transforma qualquer coisa em ouro, é cair em credulidade ilusória em objetos inexistentes. É possível acreditar em objetos reais, mas que não são dignos de uma relação de fé: como aqueles que depositam a sua confiança no diabo ou, mais pedantemente, em algum vigarista religioso ou político. Finalmente, é possível acreditar em algo existente e digno de fé, mas fazê-lo de uma forma indigna, como no caso citado pelo apóstolo Tiago (2,19), que diz que os demônios acreditam em Deus e tremem, pois acreditam de uma forma indigna (não com alegria e confiança, mas com horror e repugnância). Assim, falando de fé religiosa, “a virtude só pode ser considerada uma fé no Ser supremo, que se dirige a Ele com dignidade, o que significa com livre piedade filial” (V. Solovyov).

A relação que os discípulos de Jesus tinham com ele era uma relação de fé. Não eram meros aprendizes de uma doutrina ou de certo modo de vida, mas estavam ligados ao Mestre por uma relação de profunda comunhão vital, que implicava reconhecer e confessar nele o Messias de Deus. Para além da evidência da sua realidade humana, as suas palavras e ações exigiam uma atitude de confiança: acreditar que nele as antigas promessas contidas na lei e nos profetas eram de fato cumpridas. Os discípulos tinham testemunhado em numerosas ocasiões como Jesus louvou a fé daqueles que pediam cura, libertação ou perdão. Podem ter sentido que a fé que professavam pelo Mestre foi abalada por vezes, especialmente quando sentiram inimizade e ameaças de pessoas de autoridade e prestígio. De fato, a fé é posta à prova pelas dificuldades de todos os tipos que nos rodeiam. A primeira leitura ilustra isto com força expressiva. Pode ser a evidência do mal no mundo, que parece dominar e ser insolente; pode ser dificuldades pessoais e a impressão de que Deus não responde aos nossos pedidos; pode ser dúvidas internas que por vezes nos assaltam, porque, como dissemos, a fé tem certamente uma componente de risco, e as bases sobre as quais repousa não são demonstrações visíveis ou provas laboratoriais. Os discípulos sentiram, por um lado, que Jesus lhes exigia uma resposta de fé; por outro lado, experimentaram as fraquezas inerentes a uma atitude confiável. Por isso, sabiamente pediram a Jesus para aumentar a sua fé. É um pedido que também nós podemos fazer hoje. Porque, embora falemos frequentemente de ter ou não ter fé, a fé não é um mero objeto de posse, mas uma atitude viva, que pode sofrer de anemia ou raquitismo se não for adequadamente nutrida, ou pode crescer e fortalecer-se até dar frutos.

A resposta de Jesus, à primeira vista, pode ser surpreendente. Em vez de lhes conceder o presente solicitado, ele parece lançar um desafio: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda…“. Ele parece implicar que a fé não é uma questão de quantidade, mas de QUALIDADE. O importante é que está viva, como uma semente, e depois, por muito pequena e fraca que pareça, é capaz de fazer milagres e de fazer coisas impossíveis. A alusão à amoreira (uma planta com raízes profundas e ramificadas, difícil de arrancar) deve ser entendida no sentido metafórico em que dizemos que “a fé move montanhas“. A fé viva, de fato, coloca-nos em movimento e permite-nos fazer coisas que de outra forma pareceriam impossíveis.

Mas o que significa realmente “FÉ VIVA“? Não se trata do nosso poder de fazer coisas extraordinárias, como se através da fé nos tornássemos uma espécie de taumaturge (capacidade de um mago de fazer magia) capaz de surpreender qualquer um que venha na nossa direção. A fé de que aqui falamos é a fé em Jesus, é a confiança na sua palavra, a aceitação da mesma e a prontidão para pô-la em prática. Como a realidade viva que é, tal como a semente, precisa ser cultivada e, como diz Paulo na segunda leitura, REAVIVADA. Face às dificuldades internas e externas, a fé testada torna-se fidelidade: as últimas palavras da profecia de Habacuc são por vezes traduzidas assim: “O JUSTO VIVERÁ PELA SUA FÉ“. E uma fé que confia e é fiel é uma fé que enfrenta corajosamente as dificuldades, que não se esconde, que dá testemunho. Temos o exemplo supremo no próprio Jesus, que vive em plena confiança no seu Pai, e fiel à sua missão, vai até ao ponto de dar a sua própria vida.

No texto do Evangelho podemos ter a impressão de que depois da breve catequese sobre a fé, Jesus muda de rumo e começa a falar de algo completamente diferente. Mas de fato, existe uma profunda ligação entre os dois ensinamentos. Se, como já dissemos, a fé é alimentada pela palavra de Jesus ouvida, aceita e posta em prática, a alusão ao serviço não é acidental. A fé não é uma confiança passiva, mas põe-nos de pé e faz-nos viver ativamente, para agir. E qual é o tipo de ação que, como fruto da semente, vem da fé em Jesus Cristo? Aquele que acredita Nele deve viver como Ele viveu (cf. 1 Jo 2,6). Se Ele veio para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos (cf. Mt 20,28), o discípulo de Jesus deve ser um servo de Deus e dos seus irmãos e irmãs. Se ele é um verdadeiro crente, este é o milagre que a fé opera nele: para desenraizá-lo das raízes do egoísmo e da segurança, e para plantá-lo no mar arriscado do serviço aos outros. Viver numa atitude de dedicação e serviço não é uma dimensão adicionada à fé, algo de que nos podemos orgulhar ou pelo qual devemos exigir um salário, mas a consequência natural deste “VIVER PELA FÉ“, deste espírito de energia, amor e bom senso; é o fruto daquela semente de fé que a palavra de Jesus plantou dentro de nós.

Após o Concílio Vaticano II, no meio do processo de renovação eclesial, houve um ditado muito significativo sobre o papel e significado da Igreja no mundo: “uma Igreja que não SERVE não tem qualquer utilidade“. O mesmo se pode dizer da nossa fé:

Uma fé que não nos coloca numa atitude de serviço é uma fé fraca e moribunda, se não já totalmente morta.

Mas o contrário também é verdade:

Para fortalecer, reanimar e aumentar a nossa fé, além de pedir ao Senhor na escuta da Sua palavra, devemos colocar-nos imediatamente ao serviço dos nossos irmãos e irmãs.

Texto: JOSÉ MARÍA VEGAS, CMF
Imagem: PIXABAY
Fonte: MISSIONÁRIOS CLARETIANOS (CIUDAD REDONDA)