INTENÇÃO
A Epístola aos Efésios não responde a problemas particulares, nem a possíveis erros na Igreja; não polemiza; não se dirige a uma comunidade em particular, mas responde a problemas globais das comunidades do mundo paulino
- O autor pretende instruir os cristãos a respeito do mistério: projeto salvador de Deus e na vida comunitária em Jesus Cristo.
- Ressalta a identidade e pertença a Cristo e à Igreja.
- Os cristãos pertencem agora a uma Igreja grande, quase uma terceira raça (composta por cristãos do II e III séculos).
- É o começo e fundamentação de uma eclesiologia; o ponto de partida eclesiológico do Novo Testamento.
- Os cristãos vivem num mundo agressivo e tentador, mas resistem bravamente para não serem “absorvidos” pelo sistema.
- Efésios trata da estruturação e consolidação da Igreja para enfrentar o império romano com toda a sua cultura.
- Na segunda parte da Carta, o autor define regras de comportamento cuja prática diferencia os cristãos.
A Epístola procura transformar o patriarcalismo da família romana, em paternalismo, que trata de encarnar a solidariedade cristã, com a esperança de uma transformação da realidade pela fé. O cristão rompeu com o paganismo e caminha na Igreja, intimamente associada a Cristo.
A QUÊ RESPONDE A CARTA AOS EFÉSIOS?
- Os cristãos já não pertencem a Israel; a separação já havia acontecido
- O autor ensina que a Igreja tem por fundamento os apóstolos e profetas (Ef 2,20), indicando que a Carta foi escrita depois da morte de Paulo (61 a 63 d.C).
- Estamos num tempo em que a Igreja está se estruturando, com forte atuação do Espírito Santo; ainda não há insistência nos ministérios (episcopais e presbiterais), que viriam depois.
- Diminuem os carismas pessoais; a liturgia é mais organizada. Ela substitui a inspiração dos profetas. O Espírito manifesta-se, mais no entusiasmo litúrgico e menos na improvisação comunitária.
- Os cristãos vivem em comunidades e formam grupos consolidados e estáveis, integrados na sociedade romana. São famílias estruturadas com a autoridade paterna sobre a esposa, os filhos e os escravos, família típica da sociedade romanizada.
AUTORIA
- A hipótese de ser uma das Cartas do cativeiro, na prisão de Paulo entre os 61 e 63 d.C. não se sustenta, mesmo com a indicação na própria Carta, como a seguir:
Ef 3,1: Por essa causa é que eu, Paulo, prisioneiro de Jesus Cristo por amor de vós, gentios;
Ef 4,1: Exorto-vos, pois, – prisioneiro que sou pela causa do Senhor:
Ef 6,19-20: E orai também por mim, para que me seja dado anunciar corajosamente o mistério do Evangelho, 20do qual eu sou embaixador, prisioneiro). - O vocabulário é próprio de Efésios, diferente de outras cartas autênticas de Paulo;
- Efésios parece ser um desenvolvimento da Carta aos Colossenses: há muitas relações entre as duas (fonte de inspiração).
- Quando foi escrita, o conflito entre judeus e não judeus já estava superado.
- Os destinatários já não esperam a vinda iminente de Cristo, como Paulo acreditava. Essa expectativa tinha enfraquecido e a preocupação era organizar as comunidades e sobreviver à violência do império.
- Efésios tem relação e semelhança com as cartas católicas (Tg, 2Pe, 1,2,3Jo, Jd) escritas entre os anos 90 e 110, posteriores ao apóstolo Paulo, que teria sido decapitado em Roma entre 61-64 d.C.
- A menção a Éfeso não está presente em manuscritos importantes, o que faz pensar numa carta circular aos cristãos da Ásia Menor, por volta do ano 90 d.C.
Portanto, é bem provável que Paulo não tenha escrito a carta aos Efésios. É uma carta circular, enviada a várias comunidades, no fim do primeiro século, no contexto de exploração e dominação do Império Romano.
O autor (discípulo de Paulo?) escreve a pequenas comunidades, espalhadas pelas grandes cidades do império romano e expostas à enorme pressão do ambiente pagão. Para sobreviver no meio de tal ambiente é preciso radicalidade: expressa, tanto no estilo de vida alternativo como nas palavras.
REALIDADE EM QUE A CARTA FOI ESCRITA
O livro do Apocalipse de João nos ajuda a compreender a realidade da Ásia Menor no fim do primeiro século: exploração econômica da região pelos “mercadores da terra” (império romano, que levavam a riqueza para a capital do império:
12carregamento de ouro e prata, pedras preciosas e pérolas, linho e púrpura, seda e escarlate, bem como toda espécie de madeira odorífera, objetos de marfim e madeira preciosa; bronze, ferro e mármore; e essência; aromas, mirra e incenso; vinho e óleo, farinha e trigo, animais de carga, ovelhas, cavalos e carros, escravos e outros homens (Ap 18,12-13).
A sociedade é escravagista, controlada por um exército poderoso e violento; a maioria das terras da Ásia Menor pertencia ao império, com cobrança de impostos e monopólio do comércio.
A maioria da população local era submetida à escravidão: pelos impostos, pelo comércio abusivo e pela violência. O trabalho era realizado nas fazendas (ovelhas), nas minas (prata e pedras preciosas) e nas fábricas (carroças), trabalho que enfraquecia e empobrecia o povo.
Além disso, havia o sistema de patronato: presente nas relações de família; na economia; sua base de troca e favores criava dependência e submissão.
O imperador era chamado pater patriae (pai da pátria); ele controlava e submetia toda a população conquistada pelo império romano.
A helenização (romanização) baseadas no dualismo da cultura grega: Deus e o mundo, incentivava a busca desenfreada de bens, prazer e honra, provocando uma ética da liberação dos costumes familiares e sociais; tudo isto provocava ignorância, insensibilidade, paixão enganadora, mentira, injustiça, difamação, roubo, conflito, violência (Ef 4,17—5,30).
A religião imperial: O poder imperial era legitimado pela religião oficial do Estado. Praticava-se o culto ao imperador, considerado divino e celebrado nos templos. A ele atribuía-se o anúncio da boa nova, Senhor do império e da terra; ele estabelecia a paz e a salvação: a pax romana. O evangelho do império era o oposto do evangelho de Jesus Cristo, por meio do qual Deus Pai revela seu mistério (projeto) de salvação (Ef 1,1-23; 3,1-13).
Cultura religiosa: Os Efésios eram, na sua maioria, gentios convertidos; sua cultura e religiosidade: helenística (greco-romana), marcada pelas religiões de mistério, magia, astrologia; acreditavam em maus espíritos, no diabo (maligno) e poderes cósmicos que habitavam o céu e controlavam o mundo, os seres humanos e a história, provocando injustiça, violência e morte (Ef 2,1-3; 6,10-20).
Domiciano (81-96 d.C.), arrogante, exigia ser chamado “Senhor e Deus”, promoveu o terror – mandou matar até familiares – e feroz perseguição aos cristãos, violência e exploração (crise econômica), embora não haja indicação concreta na Carta relacionada à perseguição.
Esse era o ambiente das jovens comunidades cristãs, expulsas da sinagoga (Jo 9,34), que deviam unir-se, firmar e manter sua caminhada, pregar Jesus Cristo crucificado e praticar a solidariedade (Ef 3,14,22). Deviam apropriar-se das virtudes cristãs, livrar-se dos vícios e dos maus espíritos.
Pelos anos noventa, a preocupação dos cristãos é edificar a Igreja, estabilizar a família e construir “moradas” neste mundo: Se alguém me ama, nós viremos a ele e faremos nele nossa morada (Jo 14,23).
OS PROBLEMAS DA ÉPOCA
Numa sociedade escravagista, um pequeno grupo de comunidades da Ásia Menor enfrenta problemas para manter sua sobrevivência: questão da terra (dominada e explorada pelo império), os valores do império reinantes (mundo helenizado e hierarquizado). Todos eram controlados pelo sistema patronal e patriarca, cujo patrono era o imperador, que instaurava relações de submissão e desprezo (Ef 4,16: 16É por ele (Cristo) que todo o corpo – coordenado e unido por conexões que estão ao seu dispor, trabalhando cada um conforme a atividade que lhe é própria – efetua esse crescimento, visando à sua plena edificação na caridade).
Como pregar um Messias crucificado diante de um imperador todo poderoso? Como usar o título de Senhor e salvador (pax romana), se eram títulos reservados ao imperador? Como situar Jesus diante do “deus imperador?” Como falar do evangelho de Jesus diante do “evangelho do imperador”? Como enfrentar o grupo de gnósticos no interior da comunidade (Ef 3,18-19: … que possais … compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, 19isto é, conhecer a caridade de Cristo, que desafia todo o conhecimento, e sejais cheios de toda a plenitude de Deus); salvos pelo conhecimento, se centravam em si mesmo, com uma espiritualidade desvinculada do compromisso comunitário e social.
A relação entre não judeus e judeus convertidos (Ef 2,14: 14Porque é ele a nossa paz, ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava).
O perigo para os cristãos era retroceder na imoralidade e na libertinagem (Ef 4,17-20a: 17Portanto, eis o que digo e conjuro no Senhor: não persistais em viver como os pagãos, que andam à mercê de suas ideias frívolas. 18Têm o entendimento obscurecido. Sua ignorância e o endurecimento de seu coração mantêm-nos afastados da vida de Deus. 19Indolentes, entregaram-se à dissolução (devassidão/imoralidade), à prática apaixonada de toda espécie de impureza.20Vós, porém, não foi para isto que vos tornastes discípulos de Cristo).
Como os cristãos, batizados em nome de Cristo, assumem o “código doméstico” (lei da submissão) na família? (Ef 5,21—6,9) (Fazer leitura pessoal).
Injustiça e opressão eram uma constante nos poderosos (Ef 6,12: 2Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares), vigentes na sociedade escravagista, na qual era quase impossível promover mudanças. Como os Efésios devem lutar contra o diabo (maligno), que seduz e se encarna nos poderosos do mundo?
ESQUEMA DA CARTA AOS EFÉSIOS
A Carta aos Efésios pode ser dividida em duas partes: uma doutrinal, sobre o projeto salvador (o mistério) de Deus, realizado em seu Filho Jesus Cristo, desenvolvido na Igreja, que como cabeça, Jesus Cristo chefe supremo e crucificado, anunciado por Paulo; outra parte é marcada pela exortação a dinamizar a vida cristã: viver na unidade, como filhos da luz, ser família cristã, lutar contra o mal.
A Carta aos Efésios pode ser dividida assim:
- Introdução – 1,1-2: Saudação inicial
- Primeira parte – 1,3—3,21: o mistério de Cristo soberano, cósmico e eclesial (Cristologia)
- Segunda parte – 4,1—6,20: a vida cristã na prática (Eclesiologia)
- Conclusão – 6,21-23: saudação final (Consequências práticas para a vida).
MENSAGENS DA CARTA AOS EFÉSIOS
- Jesus é o Senhor e a sua presença gloriosa (Ef 1,3-23): descreve e prega a soberania de Jesus Cristo como único Senhor sobre “as coisas celestes e terrestres”, a fim de fortalecer a identidade e a resistência dos cristãos ante a dominação dos poderosos do mundo, isto é, do imperador, “Senhor e Deus”.
- A Igreja universal (Ef 2,1-22): Cristo crucificado, como manifestação do amor infinito do Pai, que derruba as barreiras (como a lei e a tradição oficial), integrando Israel às outras nações. Judeus e gentios, agora cristãos, possuem igualdade de direitos, formam uma unidade, um só corpo: “homem novo”, “nova humanidade”.
- O mistério de Deus como amor de Cristo (Ef 3,1-21: a obra salvífica (mistério) de Deus, realizada em Jesus Cristo (soberano) é revelada e desenvolvida na Igreja, corpo de Cristo, na qual os gentios também fazem parte do povo de Deus. Na Igreja, a fé e o amor de Cristo ativam o “coração” dos fiéis para superar “todo conhecimento” (gnose) para construir a “morada” de Deus num mundo injusto e opressor.
- Unidade na diversidade (Ef 4,1-16): pelo batismo o cristão “ressuscita” em Jesus Cristo, são libertos do “pecado” (o poder das trevas) e são unidos ao Filho de Deus; participam do mistério (projeto) de salvação de Cristo, formando uma nova humanidade, o “homem perfeito”, na Igreja. Todos, com seu carisma e função, formam um só corpo e um só Espírito no amor de Cristo em oposição à sociedade patronal e escravagista de desigualdade e discriminação.
- Nova humanidade em Cristo (Ef 4,17—5,20: a pessoa renovada em Cristo reveste-se do “homem novo”, como filha da luz, e caminha no amor, bondade, justiça e verdade, abandonando a “libertinagem e a prática insaciável de todo tipo de impureza”.
- Amor e respeito (Ef 5,21—6,9: inspirado na união de Cristo e da Igreja, o cristão deve praticar o código doméstico (relação entre marido e mulher, pais e filhos, patrões e escravos), com a reciprocidade e o amor ao próximo, nas casas-empresa de residência e produção, célula fundamental da sociedade daquele tempo. A orientação visa desacreditar e subverter, pacífica e gradativamente, as relações de dominação e submissão dentro da sociedade patriarcal e escravagista, sustentada pelo império romano (mundo sem possibilidade de mudança)
- Luta contra os espíritos do mal (Ef 6,10-20): numa sociedade violenta e opressora do império, com sua religião ostensiva, o cristão deve portar a “armadura de Deus”, lutar contra os espíritos do mal (chefiados pelo diabo, o maligno, que seduzem o mundo, as pessoas e a história, com seu espírito de alienação, ignorância e libertinagem. As armas para o combate: a resistência à sociedade injusta, opressiva, que mata; a verdade, a justiça, o Evangelho da paz, a fé, o Espírito, a Palavra e a oração.
CONCLUSÃO
A Carta aos Efésios é a síntese mais complete e desenvolvida da mensagem paulina; é uma herança da mensagem paulina. Não é polêmica. Não tem o estilo nervoso, característico de Paulo.
Não é uma carta escrita por Paulo e nem contemporânea a ele; tudo indica que foi escrita uma geração posterior, provavelmente pelos anos 90.
Os temas tratados na Carta são do tempo pós-apostólico.
A luta contra a injustiça é de ontem e de hoje; o projeto salvador de Deus (mistério), revelado em Jesus Cristo é força de vida, ontem e hoje. Deus Pai reúne a todos, sem exclusão de nenhum tipo.
Os apóstolos do mal continuam presentes (ontem e hoje) pela ambição de bens e de poder, encarnados nos poderosos e continuam devorando os inocentes pelas guerras, trabalho escravo, economia selvagem, fome e violência. A luta é contra os espíritos do mal, mas também contra os poderes encarnados na realidade.
BIBLIOGRAFIA
BIBLIA GENTE. Nova humanidade em Cristo: Carta aos Efésios: Roteiros para encontros – 2023. Disponível em: https://www.paulus.com.br/portal/biblia-gente/.
CENTRO BÍBLICO PAULUS – Revestir-se da Nova Humanidade – Encontros Mês Bíblico 2023 – Carta aos Efésios – Paulus, 2023.
CENTRO BÍBLICO VERBO – Nova Humanidade em Cristo – Entendendo a carta aos Efésios – Paulus, 2023.
COMBLIN, JOSÉ – Epístola aos Efésios – Fontes / Santuário Editoras, 2013.
COMISSÃO EPISCOPAL PASTORAL PARA A ANIMAÇÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Mês da Bíblia 2023 – Carta aos Efésios: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2023.
COMISSÃO EPISCOPAL PASTORAL PARA A ANIMAÇÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Mês da Bíblia 2023 – Carta aos Efésios: Encontros Bíblicos. Brasília: Edições CNBB, 2023.
PINHEIRO DE ANDRADE, Ana Luzia – Lendo a Carta aos Efésios – A unidade do Corpo de Cristo, Paulus, 2023.
VIDA PASTORAL – Setembro-outubro – 2023, n. 356 – Paulus, 2023. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/edicoes/setembro-outubro-de-2023/.
Texto:
BRÁS LORENZETTI, cmf
ALMIR BORGES, cmf