A liturgia do V Domingo do Tempo Comum leva-nos a refletir sobre a nossa vocação: somos todos chamados por Deus e d’Ele recebemos uma missão para o mundo.
Na primeira leitura (Is 6,1-2a.3-8), encontramos a descrição plástica do chamamento de um profeta – Isaías. De uma forma simples e questionadora, apresenta-se o modelo de um homem que é sensível aos apelos de Deus e que tem a coragem de aceitar ser enviado.
No Evangelho (Lc 5,1-11), Lucas apresenta um grupo de discípulos que partilharam a barca com Jesus, que acolheram as propostas de Jesus, que souberam reconhecê-l’O como seu “SENHOR”, que aceitaram o convite para serem “pescadores de homens” e que deixaram tudo para seguir Jesus… Neste quadro, reconhecemos o caminho que os cristãos são chamados a percorrer.
A segunda leitura (Cor 15,1-11) propõe-nos refletir sobre a ressurreição: trata-se de uma realidade que deve dar forma à vida do discípulo e levá-lo a enfrentar sem medo as forças da injustiça e da morte. Com a sua ação libertadora – que continua a ação de Jesus e que renova os homens e o mundo – o discípulo sabe que está dando testemunho da ressurreição de Cristo.
Leituras
Isaías aceita o envio, ainda antes de saber qual é a missão. É o exemplo de quem
arrisca tudo e se dispõe, de forma absoluta, para o serviço de Deus. No entanto, é difícil arriscar tudo, sem cálculos nem garantias: é o pôr em causa os nossos
projetos e esquemas para confiar apenas em Deus, de forma que Ele possa
fazer de nós o que quiser. Qual a minha atitude em relação a isto?
1No ano da morte do rei Ozias,
vi o Senhor sentado num trono de grande altura;
o seu manto estendia-se pelo templo.
2aHavia serafins de pé a seu lado;
cada um tinha seis asas.
3Eles exclamavam uns para os outros:
‘Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos;
toda a terra está repleta de sua glória’.
4Ao clamor dessas vozes,
começaram a tremer as portas em seus gonzos
e o templo encheu-se de fumaça.
5Disse eu então: ‘Ai de mim, estou perdido!
Sou apenas um homem de lábios impuros,
mas eu vi com meus olhos o rei,
o Senhor dos exércitos’.
6Nisto, um dos serafins voou para mim,
tendo na mão uma brasa,
que retirara do altar com uma tenaz,
7e tocou minha boca, dizendo:
‘Assim que isto tocou teus lábios,
desapareceu tua culpa,
e teu pecado está perdoado’.
8Ouvi a voz do Senhor que dizia:
‘Quem enviarei? Quem irá por nós?’
Eu respondi: ‘Aqui estou! Envia-me’.
Palavra do Senhor.
1Ó Senhor, de coração eu vos dou graças,*
porque ouvistes as palavras dos meus lábios!
Perante os vossos anjos vou cantar-vos*
2ae ante o vosso templo vou prostrar-me. R.
2bEu agradeço vosso amor, vossa verdade,*
2cporque fizestes muito mais que prometestes;
3naquele dia em que gritei, vós me escutastes*
e aumentastes o vigor da minha alma. R.
4Os reis de toda a terra hão de louvar-vos,*
quando ouvirem, ó Senhor, vossa promessa.
5Hão de cantar vossos caminhos e dirão:*
‘Como a glória do Senhor é grandiosa!’ R.
7cestendereis o vosso braço em meu auxílio*
e havereis de me salvar com vossa destra.
8Completai em mim a obra começada;*
ó Senhor, vossa bondade é para sempre!
Eu vos peço: não deixeis inacabada*
esta obra que fizeram vossas mãos! R.
Será um dado adquirido, para qualquer cristão, a ressurreição de
Jesus. No entanto, essa ressurreição é, para nós, uma verdade abstrata que
afirmamos no credo, ou algo que é vivo e dinâmico, presente todos os dias em
nossa vida e na nossa história, gerando vida nova, libertação, amor,
numa contínua manifestação de Primavera para nós e para o mundo?
1Quero lembrar-vos, irmãos,
o evangelho que vos preguei e que recebestes,
e no qual estais firmes.
2Por ele sois salvos,
se o estais guardando
tal qual ele vos foi pregado por mim.
De outro modo, teríeis abraçado a fé em vão.
3Com efeito, transmití-vos em primeiro lugar,
aquilo que eu mesmo tinha recebido, a saber:
que Cristo morreu por nossos pecados,
segundo as Escrituras;
4que foi sepultado;
que, ao terceiro dia, ressuscitou,
segundo as Escrituras;
5e que apareceu a Cefas e, depois, aos Doze.
6Mais tarde,
apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma vez.
Destes, a maioria ainda vive e alguns já morreram.
7Depois, apareceu a Tiago
e, depois, apareceu aos apóstolos todos juntos.
8Por último, apareceu também a mim, como a um abortivo.
9Na verdade, eu sou o menor dos apóstolos,
nem mereço o nome de apóstolo,
porque persegui a Igreja de Deus.
10É pela graça de Deus que eu sou o que sou.
Sua graça para comigo não foi estéril: a prova é que
tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos
– não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo.
11É isso, em resumo, o que eu e eles temos pregado
e é isso o que crestes.
Palavra do Senhor.
A reflexão deste texto deve pôr em paralelo o “caminho cristão”, tal como Lucas o descreve aqui, com esse caminho – às vezes não tão cristão como isso – que vamos percorrendo todos os dias. Chamados a sermos “pescadores de homens”, abraçamos a missão combater o mal, a injustiça, o egoísmo, a miséria, tudo o que impede os homens nossos irmãos de viver com dignidade e de ser felizes. É essa a nossa luta? Sentimos que continuamos, dessa forma, o projeto libertador de Jesus?
Naquele tempo:
1Jesus estava na margem do lago de Genesaré,
e a multidão apertava-se ao seu redor
para ouvir a palavra de Deus.
2Jesus viu duas barcas paradas na margem do lago.
Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes.
3Subindo numa das barcas, que era de Simão,
pediu que se afastasse um pouco da margem.
Depois sentou-se e, da barca, ensinava as multidões.
4Quando acabou de falar, disse a Simão:
‘Avança para águas mais profundas,
e lançai vossas redes para a pesca’.
5Simão respondeu:
‘Mestre, nós trabalhamos a noite inteira
e nada pescamos.
Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes’.
6Assim fizeram,
e apanharam tamanha quantidade de peixes
que as redes se rompiam.
7Então fizeram sinal aos companheiros da outra barca,
para que viessem ajudá-los.
Eles vieram, e encheram as duas barcas,
a ponto de quase afundarem.
8Ao ver aquilo, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus,
dizendo: ‘Senhor, afasta-te de mim,
porque sou um pecador!’
9É que o espanto se apoderara de Simão
e de todos os seus companheiros,
por causa da pesca que acabavam de fazer.
10Tiago e João, filhos de Zebedeu,
que eram sócios de Simão, também ficaram espantados.
Jesus, porém, disse a Simão:
‘Não tenhas medo!
De hoje em diante tu serás pescador de homens.’
11Então levaram as barcas para a margem,
deixaram tudo e seguiram a Jesus.
Palavra da Salvação.
Fonte: Liturgia Diária – CNBB
Reflexão
JESUS ESCOLHEU OS PESCADORES
As pessoas se aglomeravam ao redor de Jesus para ouvir a Palavra de Deus. O início desta cena é significativo. Jesus descobre que as “pessoas” estão interessadas na Palavra de Deus, e é por isso que elas o procuram. Não era um número pequeno de pessoas, já que estão aglomeradas. Reunir as pessoas em torno da Palavra de Deus e contá-la é o primeiro passo de Jesus em sua tarefa missionária, mas ainda solitária. E o mesmo será feito mais tarde por seus discípulos, tanto aqueles que foram seus companheiros, como muitos outros que não o conheceram pessoalmente, incluindo São Paulo. São Lucas sublinha que tudo começa por receber e ouvir juntos a Palavra de Deus. Também hoje. Os discípulos de Jesus são/somos os que se reúnem e ouvem a Palavra de Deus… porque sentimos que ela pode guiar nossas vidas, nos confortar, nos propor desafios, nos tirar do habitual para um lugar melhor .
UM PEQUENO FAVOR
Nesse cenário, Jesus está procurando a melhor maneira de atender tantas pessoas, e aglomerar-se não é o melhor caminho. Então ele decide pedir a alguém um pequeno serviço, um favor. Entre todos os pescadores que lavavam as redes, foi Pedro que foi abordado por Jesus. Ele não fez um exame de suas virtudes, mas um exame de disponibilidade. Ele cuidará disso mais tarde, quando ele concordar em segui-lo, para polir o que for necessário. A generosidade e disponibilidade de Pedro, que aceita interromper suas tarefas diárias, é o que permitiu a Jesus pregar sua Palavra com tranquilidade.
Antes de fazer propostas maiores, mais sérias, mais importantes, Jesus parece “nos testar” pedindo coisas simples. Supõem uma inconveniência, uma perturbação de nossos planos, de nossos horários, de “o que temos que fazer”. E nossa resposta ao seu simples pedido… condiciona o que pode vir depois. Talvez esta primeira aproximação do Senhor ocorra quando nos pede uma ajuda para a catequese, ou para preparar uma celebração, ou para cuidar de alguém necessitado, talvez um voluntário ou uma experiência missionária mais longa, ou…
Jesus deixa claro desde o início, que para sua imensa tarefa ele precisa de ajuda. E ele começa procurando pessoas que prestem pequenos serviços, pequenas renúncias, um simples favor… É assim que ele começa a nos “escolher“. É a sua forma muito discreta de se comunicar conosco, fazendo-nos ver a necessidade que ele tem de nós, para poder atender tantas pessoas que precisam dele, para poder falar aos seus corações. Começa pedindo-nos um pouco de tempo, nosso bom trabalho ou algumas das coisas que temos. Se dermos a ele, sem grandes resistências, ele então dedicará seu tempo e seu poder para conseguir por nós o que não podemos conseguir sozinhos. No caso de Pedro, quando Jesus terminou seu discurso, ele quis recompensar seu gesto e o tempo que havia “perdido“. Pedro havia tido má sorte naquela noite: lutou muito com seu barco e com o mar, sem conseguir nada. Jesus ordenou-lhe para remar MAR ADENTRO (literalmente, “no fundo do mar”) e começar a pescar.
REMAR MAR ADENTRO
O convite de Jesus para “remar mar adentro” foi muito inoportuno. Foi como outra reviravolta. Com o cansaço de uma noite inteira, e com a decepção de não ter conseguido nada, apesar de ser um pescador experiente, e quando seus companheiros estavam se retirando para descansar, um estranho – “carpinteiro” para ser exato – lhe diz que tente novamente, e volte ao mar.
Jesus costuma aproximar-se dos homens propondo exigências estranhas, pedidos aparentemente absurdos ou inoportunos. Mas como você acha que devemos pescar “durante o dia“? Qualquer pescador do Mar da Galileia sabe que as horas de pesca são à noite! O que nos é explicado aqui é que Jesus quer nos tirar de nossas rotinas, de nossas experiências de vazio depois de ter lutado tanto sem conseguir nada. Busca pessoas dispostas a “se mexer” e entrar no mar, “se molhar”, que não tenham medo ou preguiça de sair da margem tranquila onde nunca acontece nada e, claro, onde nunca pegaremos nada. Com a linguagem da psicologia atual, poderíamos dizer que Jesus nos convida a sair da nossa “zona de conforto“, das nossas coisas conhecidas, para descobrir outras melhores.
Pedro, que tinha um coração enorme, deve ter ouvido atentamente aquela pregação de Jesus no lago. E ele entendeu que “ouvir” não era suficiente. E decide confiar: «em atenção à tua palavra, vou lançar as redes». De novo a «Palavra» é que pede «ação». Aquela Palavra que pode parecer absurda, desconfortável, fora de lugar… quando a escutamos na oração, na liturgia… Mas “pela tua Palavra“, porque a dizes e pedes… E então chega o êxito pelo qual trabalhamos tanto, conseguimos mais do que poderíamos imaginar. Não apenas redes cheias, mas uma vida “DIFERENTE“, que importa muito mais.
O “remar mar adentro” de Jesus a Pedro tem que nos convencer de que, se queremos ver milagres hoje, se queremos encher o barco, devemos obedecer (literalmente “ouvir a Palavra”) como Pedro, ter a mesma confiança. Quem arriscar viver e agir de acordo com a palavra de Jesus poderá testemunhar milagres. Podemos não ter que parar de fazer o que sempre fazemos, mas temos que fazer diferente. Talvez sem abandonar a própria profissão, e usando o mesmo barco de sempre. Ou pode nos chamar para algo imprevisto, surpreendente e muito melhor.
PESCADORES DE HOMENS
O “pescar homens” era um ditado popular que significava tirar uma pessoa de um perigo grave. O chamado de Jesus fará Pedro descobrir que a felicidade, a plenitude, o “barco” realmente cheio não é aquele que acumula peixe abundante para vender no mercado… mas “encontrar pessoas”, resgatar pessoas do mal/mar. São as pessoas que têm de ocupar o centro das nossas vidas e das nossas tarefas. Pessoas feridas, descartadas, marginalizadas, necessitadas, doentes… São tantas!
Em alguns casos o chamado do Senhor será total: deixar tudo para estar com eles e servi-lo. Porém, devemos priorizar no nosso dia a dia as pessoas como nossa principal preocupação, principalmente as que sofrem, as que estão mal… é um chamado para todos.
Em tempos de SÍNODO é bom ressaltarmos que o chamado de Jesus não é para poucos seletos e qualificados (Pedro e seus companheiros não o foram), mas que o Barco da Igreja cumprirá sua missão com a participação de todos, organizando-nos melhor, olhando para o mar (e não para o barco), jogando ao mar tanto lastro que foi acumulando, para navegar leve, levado pelo Vento do Espírito, e deixando o Jesus que viaja a bordo nos dizer onde e quando temos que pescar… embora tenhamos “sempre” feito diferente.
Texto: Quique Martínez de la Lama-Noriega, cmf
Imagem: La Llamada -Jorge Orlando Cocco Santangelo (Museo de Historia de la Iglesia)
Fonte: Ciudad Redonda