Que ano duro e difícil para o povo brasileiro, esse 2022 que se aproxima do fim. Quanta angústia, quanta dor, quanto medo vivido, quanta ansiedade reprimida. Após dois anos de uma pandemia que a todos confinou e tantas perdas dolorosas gerou, parecia que no início do ano anunciava-se uma trégua. As vacinas existiam e estavam disponíveis, muitos as tomamos, sentíamo-nos protegidos.
Porém nesse momento a “outra” pandemia – ou seria a mais real de todas, a única que realmente existiu? – mostrou seu rosto sombrio. E a política polarizada e enraivecida dividiu o país e o povo, rompendo relações e instaurando um clima ameaçador no cotidiano dos brasileiros. A inflação, a subida dos preços, as dificuldades muitas de cada dia pareciam pequenas, menores, diante da terrível perspectiva de que poderíamos ser obrigados a viver mais alguns anos de opressão, impiedade e violência. E talvez, com mais tempo pela frente, essa desolação maior se instalasse e permanecesse roubando-nos para sempre a alegria.
A eleição aconteceu e parecia que a vitória acontecida exorcizava os fantasmas. No entanto, o que se vive agora, neste tempo posterior às urnas, continua a ser obscurecido e ameaçado por manifestações que bloqueiam estradas, impedem o direito de ir e vir, decretam que filhas não podem dar o último abraço à mãe que está morrendo em hospital distante; bloqueiam a ida de um jovem à rodoviária para tomar o ônibus que o levaria à cirurgia que lhe devolveria a visão.
Grupos revestidos com a bandeira brasileira se aglomeram diante de quartéis ou em plena rua, pedindo a intervenção militar em nome da democracia. O nome de Deus é invocado a cada momento, seja ao lado de outras palavras de ordem como pátria e família, seja simbolizado em celulares postos no alto de cabeças na absurda intenção de comunicar-se com seres extraterrestres para que concedam a graça do estado de exceção em nome da liberdade.
Tudo isso leva a desejar mais ardentemente que venha o que se espera: a paz, a vida em abundância, a alegria. E a buscar ansiosamente sinais desse estado de coisas, por mínimos que sejam. Porém, em meio a essa sagrada busca notícias de partidas abruptas de seres admirados e amados por todos, que ajudaram a dar ao Brasil sua identidade, trazem outra vez a dor: Gal Costa, a baiana linda de cabelos negros e cacheados, boca vermelha e voz afinada cai fulminada por um infarto em sua casa. Erasmo Carlos, o gigante gentil, o tremendão amado que embalou juventudes e brasileiros de todas as idades, é derrubado por uma doença já instalada em seu corpo e diz adeus.
Como viver o Advento nesse clima em que parece que nada vem e tudo se vai. Vai-se o bem-estar, o sentir-se livre, as referências afetivas. E o vazio parece instalar-se com ares sombrios de quem veio para ficar. E, no entanto, uma vez mais, somos chamados a voltar-nos para a espera de quem vem. De quem disse que vinha e fielmente vem a cada ano, porque na verdade já veio na história humana há mais de dois mil anos. E vem a cada dia para todo homem e mulher que seja capaz de abertura ao mistério e esteja em busca do sentido maior da vida.
A poesia de mais um artista que graças a Deus se encontra vivo entre nós – Alceu Valença – nomeia a expectativa que insiste em habitar-nos, apesar de todos os percalços, as trevas e o medo.
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Como podemos crer nisso? Como, se tudo ao nosso redor parece desmentir a existência desses sinais e dessa vinda. Como se não enxergamos sinal algum? E, no entanto, a voz do anjo sussurrou a uma jovem que ela seria mãe do Salvador.
A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido, já escuto os teus sinais
Na casa de uma jovem moça em Nazaré da Galileia, o mensageiro de Deus chegou dizendo notícias de começos e boas novas. A voz do anjo sussurrou ao ouvido de Maria, noiva de José o carpinteiro. E ela, embora perplexa, acreditou e se dispôs a ser a serva do Senhor e a tornar-se morada de Sua Palavra. Escutando os sinais que o anjo trouxe, seu corpo engravidou do mistério que anuncia que Deus não se esqueceu da humanidade e uma vez mais foi fiel a seu povo.
Por isso, hoje nosso povo está convidado a escutar esses sinais prenhes de esperança. O anjo sussurra e convoca a estar atentos aos sinais da chegada de quem traz uma vez mais a todos o amor, a união e a paz. Escutar esses sinais é acreditar.
Que tu virias numa manhã de domingo.
Os sinais trazidos pelo mensageiro da alegria e pelo ventre grávido da jovem mãe nos convidam com firmeza e delicadeza a crer, acolher e anunciar sua vinda por cima dos telhados, no fundo dos poços, nos grotões da miséria, no aconchego das casas e nos sinos das catedrais.
Eu te anuncio nos sinos das catedrais.
Texto: MARIA CLARA BINGEMER é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Crônicas de cá e de lá ( Editora Subiaco), entre outros livros.