A CRIAÇÃO INACABADA

ARTIGOS

Caminhando, viu Jesus um cego de nascença. Os seus discípulos indagaram dele: Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras de Deus. Enquanto for dia, cumpre-me terminar as obras daquele que me enviou. Virá a noite, na qual já ninguém pode trabalhar. Por isso, enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. Dito isso, cuspiu no chão, fez um pouco de lodo com a saliva e com o lodo ungiu os olhos do cego. Depois lhe disse: Vai, lava-te na piscina de Siloé (esta palavra significa emissário). O cego foi, lavou-se e voltou vendo. Então os vizinhos e aqueles que antes o tinham visto mendigar perguntavam: Não é este aquele que, sentado, mendigava? Respondiam alguns: É ele. Outros contestavam: De nenhum modo, é um parecido com ele. Ele, porém, dizia: Sou eu mesmo. Perguntaram-lhe, então: Como te foram abertos os olhos? Respondeu ele: Aquele homem que se chama Jesus fez lodo, ungiu-me os olhos e disse-me: Vai à piscina de Siloé e lava-te. Fui, lavei-me e vejo. Interrogaram-no: Onde está esse homem? Respondeu: “Não o sei”. (João 9,1-12)

Jesus viu o homem que nunca viu nada. Os seus discípulos questionam a origem do mal: nasceu cego por sua própria culpa, ou pela dos seus pais? Tentar explicar o mal como infortúnio com o mal devido à culpa é tão antigo como a humanidade. “Porque proferis este provérbio à casa de Israel: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos é que ficaram embotados” (Ezequiel 18,2). Quanto à curiosa explicação da cegueira do mendigo devido ao seu próprio pecado, não há necessidade de recorrer à reencarnação. Um autor bíblico acreditava que uma criança podia agir mal antes do nascimento: “Jacob suplantou seu irmão no seio materno” (Oseias 12,4).

Jesus recusa qualquer tentativa de explicação do mal do mendigo com um pecado. Há sofrimentos que nenhuma falta humana pode explicar. Quando somos capazes de identificar as causas de um desastre, devemos certamente agir e, se possível, aprender com os erros que o causaram. Porém, no nosso mundo e nas nossas vidas, existirá sempre uma parte inexplicável. Por que nasceu aquela criança com deficiência? Por que é que aquela doença apareceu tão inesperadamente?

O inexplicável e o absurdo recordam-nos que não somos Deus. Somos criaturas, e, consequentemente, forçosamente limitadas e imperfeitas. Após ter encontrado Deus numa tempestade, Jó  conclui que, na imensidão da criação, ele não possui grande relevância, e consola-se por ser pó e cinzas (Jó 38-42). Segundo Jesus, o encontro com o mendigo cego não é o momento para discutir sobre a origem do mal. Contudo, também não deve dar lugar à resignação. Torna-se, sim, a ocasião para «manifestar as obras de Deus». Jesus revela-se criador com Deus, pois as obras de Deus que tem como missão cumprir são, sobretudo, a sua criação. Deus trabalhou seis dias para concluir toda a obra que tinha feito (Gênesis 2,2).

Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa (Gênesis 1,31). Mas algo não está bem quando alguém nunca vê a luz do dia! É por isto que Jesus diz: “O meu Pai continua a realizar obras até agora, e Eu também continuo!” (João 5,17). Jesus não restitui a visão ao cego – pois ele jamais a teve. Não o cura, mas completa uma obra da criação ainda inacabada. João, cuidadosamente, coloca em paralelo a criação e o ato de Jesus. Do mesmo modo que Deus fez o homem do pó da terra (Gênesis 2,7), Jesus fez dele lama para cobrir os olhos do cego. E este obedece ao seu comando: lava o rosto e vê.

Irineu, bispo em Lyon, escreve no final do século II: “O que o Verbo Artesão [por outras palavras, Cristo presente na criação como Palavra eterna de Deus] se esqueceu de modelar no seio materno, cumpre em plena luz do dia, ‘para que as obras de Deus se manifestem nele” (Contra as Heresias, V, 15, 2).

Não somos todos nós, como aquele que nasceu cego, criaturas inacabadas? Falta-nos algo para viver na plenitude a que somos chamados. Não será tanto procurando um culpado para as nossas imperfeições que avançaremos, mas, sim, escutando a voz de Cristo e fazendo o que nos diz para fazer.

PARA REFLETIR

  • Que angústias vemos à nossa volta?
  • De que infelicidades podemos identificar as causas e agir em consonância?
  • Que sofrimentos na minha vida e no mundo permanecem incompreensíveis, sem razão? O que significa deixar Cristo completar a obra de Deus que ainda agora começou?

 Texto:  COMMUNAUTÉ DE TAIZÉ
Imagem: PIXABAY

Estas meditações bíblicas são sugeridas como meio de procura de Deus no silêncio e na oração, mesmo no dia-a-dia. Consiste em reservar uma hora durante o dia para ler em silêncio o texto bíblico sugerido, acompanhado de um breve comentário e de algumas perguntas. Em seguida constituem-se pequenos grupos de 3 a 10 pessoas, para uma breve partilha do que cada um descobriu, integrando eventualmente um tempo de oração.